Jabuti Xereta
Patrick Bateman, doente crônico
18 de Novembro, 2023
Originalmente publicado na minha newsletter do Substack sob o título "A imoralidade da doença", que foi migrada para este site.
Minha rotina consiste no seguinte: em dias de folga, eu acordo às 6h30 da manhã. Organizo meu espaço e pratico ioga, o suficiente para meus músculos acordarem e meu corpo não parecer tão rígido. Todas as minhas articulações estalam e meus braços mal suportam o peso do meu corpo. É frequente meus ombros deslocarem e eu sentir um peso além da capacidade em meus pulsos. Depois, eu faço um chá sem açúcar e como duas fatias de pão com pasta de amendoim ou abacate temperado. Não como margarina nem maionese, e prefiro a pasta de amendoim por ser proteica e dar mais saciedade. Meu médico disse que estou proibida de ter apetite. Como uma fruta e bebo um pouco de água. Faço tarefas domésticas como arrumar a cama e lavar a louça, e então faço exercícios. Dou especial atenção às pernas, pois não consigo ficar em pé por muito tempo ou andar a passo normal sem sentir dor e instabilidade nos joelhos. Prendo pesos de 2kg nos tornozelos e estico e ergo e seguro. Faço abdominais e flexões até ficar difícil falar em voz alta, o que é pouco: minha capacidade pulmonar é 20% menor do que a de uma pessoa normal, então me canso mais rápido. Duas vezes por semana, eu pedalo por 30 minutos a um ritmo de 70 a 105 rpm, então uso elásticos tensionados para flexionar os braços. Alongo o pescoço, e sinto meu crânio mover de jeitos estranhos sobre as vértebras: desencaixar, então voltar, e estalar. Sinto a mandíbula em lugares que não deveria, e meus ouvidos doem. Termino os exercícios com mais um pouco de ioga, e meu corpo dói e arde. Então eu escovo meus dentes, e minhas gengivas sangram. Sinto as cicatrizes dentro da boca de todas as vezes que minha mandíbula deslocou no meio da noite, ou de quando mastiguei minha boca involuntariamente durante uma convulsão. Passo água no rosto, e vejo as marcas roxas das olheiras e alguns defeitos de pele que, ainda que aparentes, não me adicionam aos anos. Tenho 29 anos, mas pareço ter 22 ou 23. Minha pele, mesmo que castigada de sol, estresse e cicatrizes, é macia e bonita. Não preciso de muito para mantê-la assim. Escrevo um pouco em meu diário, e os ossos de meus dedos dançam sob a pele. A dor é desconfortável, mas estou acostumado. Quando descanso a caneta, tenho um calo próximo à unha e minhas articulações estão avermelhadas. Passo o resto do dia calculando se consigo fazer minhas obrigações -- buscar minha sobrinha na escola, cozinhar marmita, preparar dois lanches e tomar banho -- e ainda ter disposição para alguma outra atividade como ler, assistir a algum episódio de série ou passar tempo com o meu parceiro sem precisar pedir-lhe que não fale do que lhe interessa, porque não consigo processar mais informações pelo cansaço persistente. Nenhum sono, exercício ou rotina alimentar alivia meu cansaço; a maioria das tarefas que uma pessoa normal faz em horas, eu preciso fazer ao longo de vários dias. À noite, me deito para dormir e tento não pensar na dor. Levo pelo menos uma hora para encontrar uma posição em que nada desloque ou incomode, e durmo um sono leve e agitado por cortisol e pesadelos.
Em dias de trabalho, consigo trabalhar cinco das doze horas de maneira presente. Pouco antes do almoço, sinto meu corpo se tornar um amálgada de dor e cansaço, perdido entre o som da campanhia de senhas e as reclamações constantes. Não consigo ter força para reaplicar o protetor solar. Às vezes é difícil andar até o banheiro. Às vezes desejo boa tarde às 10h, e bom dia às 16h. Meus olhos ardem. Eu sorrio, sou prestativa, gentil. Me ofereço para ajudar com as dificuldades técnicas de colegas, de médicos, enfermagem e até de meu chefe. Escuto os pacientes como se pudesse resolver seus problemas. Engulo a dor, e espero que seja o suficiente para me nutrir durante o plantão. Às vezes limpo meu nariz e vejo cascas de sangue seco. Tento respirar fundo, mas as narinas estão obstruídas. Respiro pela boca, e minha garganta seca e racha. Minha voz falha quando falo.
A cada três ou quatro meses, tenho uma consulta médica. Colho exames de sangue cerca de dez dias antes. O médico diz: está tudo ótimo. Seus exames estão perfeitos. Você é saudável.
Tudo se resume nisso: pareço saudável, mas me sinto uma merda.
Este não era para ser o tema desta edição. É só uma coisa que me veio à cabeça algum tempo atrás: Patrick Bateman, doente crônico, andando no limite entre querer ter a saúde que aparenta ter e querer, desesperadamente, parecer doente para ter seus sintomas levados à sério.
É uma fronteira em que sempre andei. Foi uma das motivações do meu transtorno alimentar. Lembro claramente de ter pensado: eu só quero parecer tão frágil quanto eu sinto meu corpo ser.
Tenho pensado na saúde como moralidade. Na maneira que hoje o capital - a riqueza, eu digo - não é exatamente ter mais bens ou mais números na conta bancária, mas sim ter saúde. Saúde física e saúde mental. A saúde é sua maior riqueza, e a sua só depende de você, diz uma das paredes no local onde trabalho. O corpo alcança o que a mente acredita.
Tenho dano no fígado. Uma massa pequena de gordura, provavelmente por ter tomado tantas medicações psiquiátricas ao longo dos anos. Quase nada me afeta, desde que não coma certos alimentos em excesso. Vejo na internet: como se livrar de fígado gordo. Como se esse processo fosse o mesmo de ter mais gordura sob a pele.
Um colega de trabalho me disse: "quando o médico disse que tenho diabetes, eu senti que sou horrível. Uma pessoa ruim, sabe?"
Penso nos conselhos que me dão: coma mais X, coma menos Y, faça mais exercício. Em como cada diagnóstico, seja hipertensão, diabetes, dor crônica, ansiedade, depressão e até fraturas, conseguem colocar uma parcela de culpa no doente: Você não fez o suficiente. Só dependia de você.
Não importa se você tem que acordar às 4h para sair de casa às 5h para entrar no trabalho às 7h, trabalhar por 10h com um salário que não te permite uma vida confortável, enquanto a pressão de não ter feito o suficiente para ter um emprego melhor paira sobre sua cabeça. Não ter feito o suficiente para ter uma saúde melhor. Não fazer o suficiente para ser um parceiro, uma mãe, um pai melhor.
Uma pessoa melhor. Saudável.
Comum em redes sociais: uma pessoa comentar de um dos jeitos que lida com trauma. Outra perguntar: mas isso é saudável? Você precisa de terapia.
Ser saudável: não ser assombrado pelos seus traumas. Não ter ansiedade - em relação à sua vida, à mudança climática, ao genocídio sofrido pelos palestinos, aos assassinatos de pessoas trans e o feminicídio crescente -, não ter depressão - desesperança, tristeza em relação à sua impotência para mudar qualquer uma dessas coisas, ou sequer conseguir um emprego.
Ser saudável: viver separado do mundo. Viver como se o capitalismo fosse bom, energizante, e não uma máquina de assassínio e dor.
Normal, saudável. Sinônimos. É assim que a pessoa que não olha os outros nos olhos e que se incomoda com sons altos se torna doente.
Normal, saudável: viver sem dor. Viver evitando a dor. Viver lutando contra doenças, e não conviver com elas. Viver como se seu corpo fosse um fardo, algo que não é você. Seu inimigo, pecaminoso. Doente quem é tolerante de dor, quem almeja dor na intimidade. Obsceno, pervertido.
Normal, saudável: desejar uma cura. Porque a diferença causa sofrimento. Não é a falta de acolhimento, de comunidade, de compreensão, de acessibilidade. É a diferença, porque a diferença é patológica.
(E existe uma linha fina, tão fina, entre querer uma cura e querer menos sofrimento. Eu não reconheceria meu corpo sem dor, e por isso eu não quero uma cura. Mas eu quero sofrer menos, e tudo e todos que dizem ajudar, buscam uma cura. Meu corpo se torna uma doença, e tudo em mim se torna errado. E meu corpo se vai, de mim, da humanidade.)
Saudável: o corpo produtivo que nunca adoece. Que se previne, com suplementos e alimentação e exercício. O corpo que não pára, que usa o sono e o descanso como ferramentas para produzir mais. O corpo para quem a destruição de outros corpos, humanos, animais e vegetais, é o progresso.
Eu quero manter a aparência de ser saudável pelo privilégio que isso me dá - juventude, ilusão de produtividade e força. Orgulho de sobrevivente. Você é tão forte.
Eu quero dizer que sou doente, que sou debilitado por essas doenças, porque quero me aceitar. Quero que me aceitem. Quero que me amem, doente e limitado e deficiente. Quero abraçar minha dor e meu cansaço e mostrar-lhes que há um espaço para eles em mim, que meu corpo sou eu. Eu sofri, eu sofro, eu sobrevivo.
Eu quero amar minha dor porque sei, no fundo, que ela é reflexo da minha sobrevivência. Eu quero amar meu corpo limitado, porque é este corpo que eu sou. Deficiente, desviante. Doente. Obsceno, pervertido. Estranho e transviado.
Eu só queria escrever. Eu queria escrever sobre outras coisas: do luto como força motriz, do desespero de estar vivo quando tanto se desejou morrer, de solidão e desesperança. Mas é engraçado: quando escrevo aqui, eu começo um texto pessimista, e termino com a fúria dos injustiçados, sobrevivendo porque não devo.
Quem sabe na próxima falo de algum desses outros temas.
Bebam água. Muita água. Passem protetor solar, e fiquem na sombra.