Jabuti Xereta

Dona Zilda

25 de Agosto, 2023

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Não era um dia fora do normal. Talvez para um pronto socorro, um dia fora do normal seria um dia sem ocorrências do tipo. Era, então, um dia perfeitamente normal.

Não sei porque ele veio até mim, de todos que estavam lá. Era um homem, branco, altura mediana, olgos cor de mar e cabelo cor de areia molhada. Não era velho, mas talvez se sentisse. Sei como esse tipo de coisa altera a percepção de tempo. Não sei se ele estava alcoolizado, ou se estava com drogas psiquiátricas ou de rua. Podia muito bem estar sóbrio, penso. Para muitos, vejo, a diferença é irrevelante quando se trata de alguém como ele.

Veio até mim.

— Onde está a dona Zilda?

Disse: era sua vizinha, que estava internada por um corte no rosto. Perguntei se sabia a data de nascimento, o documento, nome completo. Disse que não, que só sabia os dados dele mesmo. Tinha uma cicatriz no rosto, lado oposto do qual tracejou ao perguntar de dona Zilda.

Fui perguntar se alguém com este nome tinha dado entrada pelo SAMU, e me disseram que não. Mais: Ignore-o, disseram. Ele está intoxicado. Não é uma pessoa, é um corpo tomado por substâncias químicas. Trate-o como tal.

Voltei-me a ele e disse que não tínhamos ninguém internado com aquele nome. Sugeri que perguntasse em outros PS da cidade. Ele saiu, e, entrou pela outra porta, e voltou:

— Eu preciso saber o que aconteceu com a minha vizinha, a dona Zilda. Preciso que alguém responda por isso. Quem vai responder? Que autoridade vai responder por isso?

Lembrei-me de um homem, negro, cabelo raspado, vestindo um terno barato, que entrou pela recepção em outro dia. Em surto psicótico, diziam. Ele gritava ao mundo enquanto chorava. Não davam atenção ao que dizia. Medicaram-no, e ele foi embora, quieto, cabeça baixa. Com vergonha.

Eu, também, sei da vergonha que é ter sua mente virada do avesso em público. Eu escutei o que ele dizia, o rosto manchado de desespero.

Não lhe deixavam ver o filho. Não lhe davam um emprego. Não permitiam que entrasse em estabelecimentos, “porque sou preto”, dizia. “Não me deixam ver meu filho porque sou preto”.

O rapaz que perguntou da dona Zilda saiu, e voltou, de novo. Foi ter com o guarda, que tinha me dito para ignorá-lo. Ele repetiu, os olhos fitando uma dimensão que ninguém mais podia ver:

— Quem vai responder por isso?

Eu também quero saber.

Que autoridade, que instituição vai responder por isso?