Jabuti Xereta

Dentro do oceano

19 de Setembro, 2023

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Originalmente publicado na minha newsletter do Substack, que foi migrada para este site.

Da primeira vez que tentei isto — escrever uma newsletter —, eu senti que tinha algum propósito. Alguma coisa importante, que era minha e também maior do que eu. Algo que não fosse apenas a rotina de casa e trabalho. Era assim quando eu escrevia ficção também.

Penso muito sobre escrever. Penso muito sobre criação, em geral. Tenho pensado, atualmente, em como a escrita sempre foi antítese da minha persona mais recorrente. Eu gosto de ser organizado, de ter todo o meu dia planejado. Minha terapeuta ocupacional disse: você precisa até planejar quando vai beber água. A escrita sempre foi o outro lado: a ideia vem e eu escrevo. Eu conheço a história, eu conheço os personagens enquanto escrevo. E enquanto escrevo, me reconheço também.

Parei de escrever ficção em 2021. Àquela altura, eu já tinha trazido abaixo boa parte dos meus pilares. Foi-se o ideal de quem eu deveria ter sido, quando admiti que odiei minha formação acadêmica, que odeio a literatura tal como me foi ensinada por doutores. Foram-se as correntes de minha mente e meu corpo, os remédios que me deixavam lento e fora de mim, que me roubavam memória, raciocínio e emoção. Foi-se minha zona de conforto, quando decidi passar 20 dias em uma cidade que nunca visitei, na casa de alguém que tinha conhecido poucos meses antes e no entanto sentia que o conhecia desde sempre. E no fim do ano, foi-se meu último pilar, minha última corrente, que tinha nome, rosto e pessoalidade.

Quando a última corrente quebrou, eu me afoguei.


Alguns anos atrás, eu fiquei em um oceano por décadas. Andando no fundo do mar, entre bichos fantásticos e tempestades. Eu tinha um objetivo: precisava encontrar uma pessoa, e dizer-lhe que seu pai não voltaria. Que ela precisava voltar à terra firme, e viver assim mesmo, apesar de tudo. Foi assustador, e em muitos momentos eu me afoguei. Fora do meu corpo, eu estava em uma cama de hospital, com um tubo de ar no meu pescoço. E me afogava, na terra firme, com pulmões mecânicos.

E me afoguei de novo, quando soltei aquela última corrente. Mas não tinha quem buscar no fundo oceano — era eu, e apenas eu. Todas as minhas tentativas de voltar à terra firme eram dolorosas.

Escrever ficção era terra firme. Mais: era um deserto. Quando passei a planejar minhas histórias, quando decidi que faria literatura, arte, eu abandonei a única coisa que me dava vida. Eu tinha desertificado minha parte mais viva para encaixá-la no ideal de outro.

Pois veja: quando voltei à terra firme, em 2015, eu não reconhecia o mundo. Eu não me reconhecia. Eu reconhecia, ironicamente, a pessoa que não estava presente em nenhuma das minhas lembranças. Ela foi âncora. E corrente. Prisão. As impressões dela se tornaram as minhas, os valores dela se tornaram os meus. Eu me matava, dia após dia, para me tornar o que ela queria que eu fosse.


Da primeira vez que escrevi uma newsletter, eu tentei buscar a terra firme. Eu queria buscar novas correntes. Mas o mar me puxava, de novo e de novo. Eu não queria me afogar, eu dizia. Eu lutava.

Eu não queria admitir que gostava de me afogar.

Pois quando estou neste oceano, meu corpo é meu. Eu sinto cada pedaço dele. Todas as dores e traumas e ruídos de ossos que não se encaixam direito. Eu sou meu corpo, e eu sou meu.


Quando escrevo, eu me reconheço. Quando escrevo para/com os outros, eu existo.

Tentei negar: “é exibicionismo”, “é uma performance”. Mas eu sei como sou quando estou performando, e tem uma diferença. E escrever, para mim, não é uma performance. Minha voz são letras no papel e gestos com as mãos. Nunca foi som.

Meus planos, agendas, scripts. Eles são performance.


Minha terapeuta ocupacional disse: quando algo é espontâneo, é mais genuíno. Eu planejo tudo que faço, o que quero fazer e criar. E, no entanto, raramente crio.

Eu decidi fazer esta newsletter há 40 minutos. Espontâneo, impulsivo. Genuíno.

O convite: nesta segunda tentativa de newsletter, eu quero explorar o oceano, com quem mais quiser estar junto.

Não sei para onde vai. Não sei se vai ter algum momento que vou, novamente, querer estar sozinho. Não sei.

Eu gosto de não saber.

Eu cansei de planejar.