Jabuti Xereta
Outra coisa
Este poema (?) foi escrito há muitos meses, mas nunca tive coragem para publicá-lo. É bem pessoal, e tem um cunho religioso para mim, que é uma faceta de minha vida que não demonstro em espaços públicos. Gosto muito dele, porém, e gostaria de outras pessoas o lessem por isso.
Meu avô, que morreu de aneurisma aos 40 anos, trazia os mortos à vida todos os sábados. Pai de santo, mensageiro dos mortos. Eu não o conheci. Minha mãe tinha 16 anos quando ele morreu, e eu só nasceria 20 anos depois, 12 semanas antes da data anunciada. Minha mãe estava desmaiada numa maca de metal, barriga aberta porque nem um par de fórceps me tirou de seu útero. Os médicos disseram que um de nós morreria. Nós dois sobrevivemos.
Ela foi para a casa e eu fiquei em uma gaiola de vidro pelos próximos quatro meses. Uma cápsula espacial. Eu, um alienígena que ainda não estava pronto para o mundo. Eu não era um bebê. Eu era outra coisa.
Eu tenho os olhos do meu avô. De cor incerta, nem verdes nem castanhos, cílios longos e sobrancelhas grossas. Eu tenho o queixo de meu pai e a pele de minha mãe, e o peso de todo seu trauma. Os olhos não são as únicas coisas que tenho de meu avô.
Sou bruxo desde os seis anos de idade, quando minha prima morta veio brincar comigo. Como meus outros primos, ela era amarga e me odiava, e me acusava de ter roubado seu lugar com seus pais. Ela esteve comigo pelos próximos 20 anos, quando a Mãe dos Mortos veio me dizer que eu não precisava morrer por ela. Ela não tem como voltar, mas eu estou aqui, e ela já teve tanto trabalho me puxando da morte não uma, mas duas vezes. Você tem que viver, ela disse. Você tem que viver, diabo, se contente com isso.
E eu vivi. A Mãe dos Mortos é, também, minha mãe. Ela me ensinou que a morte e decomposição podem ser tão belas quanto qualquer coisa viva. É descanso. É a vida, devolvida ao mundo que te deu vida.
A morte é parte de mim. Eu morri e nasci tantas vezes, e não tenho medo disso. Eu honro todos os meus eus que morreram para aquele que vive hoje. Eu morrerei muitas mais vezes. E eu nascerei outras mais.
O Pai do Fogo me deu dois machados, em um sonho. Ele disse para usá-los de muleta quando não conseguisse andar. Ele disse para usá-los de arma para destruir as torres que achar no caminho. Para destruir todo castelo e rei, ele disse, e para eu continuar meu caminho, custe o que custar. O Pai do Fogo é, também, meu pai. O fogo em seus olhos arde nos meus, e em meu sangue. É meu combustível. Eu continuarei, custe o que custar.
O Mensageiro me ensinou minha própria linguagem secreta. Me ensinou como meus pulmões e mãos falam. Me ensinou dos limites e mentiras da linguagem comum. O que sentes, ele disse, palavras não traduzem. É certo e teu, e teu apenas. Não deixa que ninguém leve. Não deixa que ninguém afogue. O Mensageiro é meu protetor, guardião e mentor. Ele me ensinou a queimar água com fogo e trazer vida pela morte. Você é outra coisa, ele disse. Contente-se com isso.
Eu me contentei.
Eu não sou meu avô. Eu não o conheci. Eu nunca sonhei com ele, e sua fotografia desapareceu quando minha velha casa veio abaixo. Eu não sou filho de minha mãe, e eu não sou filho de meu pai. Eles me veem como filha, e nada que eu faça tira este véu de seus olhos. Eu sou filho da morte e do fogo, protegido pelas tramas da poesia. Eu não sou deste mundo, e ele nunca estará pronto para mim.
Eu sou outra coisa.