Jabuti Xereta

Quem é Sísifo sem a rocha?

10 de Outubro, 2023

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Originalmente publicado na minha newsletter do Substack, que foi migrada para este site.

Eu escrevi isso em meu caderno de bolso, com a data 29 de setembro de 2023. Só isto: “Quem é Sísifo sem a rocha?”. É um pensamento que tenho tido há tempos. Sempre volta, mesmo que eu tente responder à pergunta. “Sísifo continua sendo Sísifo”, "Ele pode ser quem ele quiser, depois que largar a rocha".

Mas talvez uma outra pergunta pertinente seja: O que é a rocha?


Histórias sempre foram meu viés interpretativo favorito. De mim e do mundo. Me escrevia nas histórias que contava, e relacionava minhas experiências e ideias com aquelas que lia.

Me vejo como Sísifo — acho que todos se veem, em algum momento. Subir a montanha com a rocha, para mim, é viver carregando meus traumas e segredos, dia após dia, e ocasionalmente me ver esmagado por eles, na boca do abismo. A rocha é intimamente ligada à minha família, aos traumas multigeracionais, à negligência deles em relação à minha saúde, ao seu desconhecimento dos traumas que passei. Especialmente, à minha sensação de ser responsável por eles, por ter deixado à mostra a ferida dos traumas que eles também passaram, e por ver neles o que se esforçam para não mostrar.

A rocha é a culpa, de muitos jeitos. Como a hubris de Sísifo ao enganar a morte duas vezes, minha transgressão é ter esse conhecimento. A rocha é a culpa e a punição, uma.

Um dia, quando acordei, pensei: eu posso simplesmente largar disso. Eu posso simplesmente não me sentir culpado por ver todas as rachaduras na minha família, eu posso simplesmente não pensar nos jeitos que nós poderíamos ser melhores, nas injustiças que esse ciclo traumático causa, em como determinadas coisas não deveriam ter acontecido e como poderiam ter sido evitadas. Eu posso simplesmente não me sentir responsável mais.

Mas depois de tanto tempo, Sísifo se reconheceria sem a rocha?

Quando essa rocha se desfez no fundo do abismo, eu vi mãos machucadas e doloridas, e dor que continuava mesmo que o peso não existisse mais.

E eu senti um monstro acender dentro de mim, feito de raiva e tristeza, com muitos olhos e um corpo enevoado e disforme.

Veja: o luto não é um monstro por ser assustador. É um monstro por ser indesejável pelos outros, é um monstro por ser maior do que eu, é um monstro por insistir em transbordar mesmo quando tentamos ocultá-lo.


Os dois lados de crescer com doenças crônicas.

Um: Eu aprendi a ser resistente, a cuidar de mim por conta, a ser gentil com os outros. Eu aprendi a estar desconfortável a todo momento, e por isso eu consegui enxergar o que muitos não querem ver. Crescer com doenças crônicas contribuiu para minha educação política mais do que qualquer outro fator que consigo pensar.

Outro: Eu aprendi a tolerar sofrimento por negligência, e por isso, eu também tolerei vários tipos de trauma por anos. Eu internalizei que minhas necessidades não importam, então sou gentil e prestativo a meu próprio detrimento, e ignoro quando estou sofrendo porque nunca houve outra alternativa.

Meu refrão é: eu não estou sofrendo, na maior parte do tempo. Isso não é mentira. Mas me pergunto: e se for por que eu me acostumei a sofrer o tempo todo?


Uma coisa que escuto muito: “como você consegue?”. Como você consegue sentir dor o tempo todo e continuar fazendo as coisas? Como você consegue trabalhar plantões inteiros com membros deslocados, tendões inflamados e dor a cada vez que te tocam?

A resposta é sempre a mesma: eu estou acostumado. Nunca foi de outro jeito.

Não me pergunto: deveria ser de outro jeito? Poderia ter sido de outro jeito?


Admito que é um ponto de orgulho: eu sinto dor o tempo inteiro, e ainda consigo fazer as coisas sozinho. Algo de independência, de não precisar da ajuda de pessoas próximas, ou médicos. Eu consigo fazer tudo sozinho, e mais: não tenho como ter ajuda porque ninguém mais entende.

Porque se alguém entendesse, isso poderia ser de outro jeito. Se alguém entendesse, eu veria como foi horrendo ter crescido desse jeito. Se alguém entendesse, eu veria que não precisa ser desse jeito.

Eu estou acostumado a sentir dor. A dor é parte de mim. De muitos jeitos, ela é como eu trago sentido do mundo. Cada tipo de dor significa uma coisa diferente, vem de um lugar diferente. Eu tenho — tinha? — uma crença: eu preciso sentir essas dores, porque eu não me permiti senti-las por toda a vida. Eu preciso sentir essas dores, porque eu preciso que alguém testemunhe o que eu passei.


Ocasionalmente, alguém no pronto socorro em que eu trabalho tem uma morte parecida com as situações que eu sobrevivi. Pneumonia severa, parada cardíaca, insuficiência respiratória.

Ontem, eu comentei com a minha colega que todas essas coisas me aconteceram. Que me colocaram na lista de transplante de pulmão. Que eu tinha uma chance menor do que 15% de sobrevivência. Eu disse: as pessoas parecem morrer com tanta facilidade, e eu tive recuperação quase completa.

Eu nunca tinha falado a respeito disso em voz alta. Senti meus olhos aguarem, mas o eu que falava não estava emocionado. Sensação estranha: o fantasma de choro.


Eu desci de volta ao abismo, e peguei a rocha novamente. O vazio incomodava minhas mãos.

Mas essa rocha agora é um testemunho do que eu passei, ou é o mesmo peso de antes, virado do avesso?


Eu gosto, gostava de pensar nas minhas doenças crônicas como apenas deficiências. Sem a parte de “doença”. Doença, para mim, significaria precisar de mais ajuda, de mais intervenções institucionais e medicações que alteram a química do meu corpo. E a expressão "ser doente" tem um gosto azedo na minha boca. Ser uma pessoa com deficiência, por outro lado, seria aceitar que tenho limitações, e só.

Sei que, no fim, tenho deficiências porque tenho doenças crônicas. A separação não faz muito sentido, mas o gosto azedo permanece.

Penso em como ouvi de médicos, terapeutas, familiares, companheiros de que eu nasci com defeito, e por isso tinha “borderline” e todas as coisas que eram, na verdade, efeito de trauma. Penso em como minha voz não era escutada com psiquiatras, e nas violências que sofri durante a internação. Penso: chamar minha dor e outros sintomas de doença abre brecha para tudo isso acontecer de novo.


Alguns dias atrás, uma médica me disse que eu não precisava sentir dor. Que minha dor não era um símbolo do meu trauma, ou uma sina que eu precisava aguentar. Uma rocha que eu precisava levar montanha acima.

Ela me passou um antidepressivo para tomar, e a ironia não me escapou. Mas ela disse: não é porque você tem depressão, você não tem depressão. Esse remédio ajuda seu corpo a parar de interpretar tudo como dor.

Quando comecei a tomar a medicação, eu pensei: E se eu me perder? Se eu deixar de ser quem eu sou? E se eu for curado?

Penso: é balela. Eu ainda vou ter hipermobilidade mesmo que eu não tenha fibromialgia. Eu ainda vou ter hipersensibilidade autista mesmo que o remédio me deixe menos sensível.

Mas tenho medo de não me reconhecer.


Eu disse: gosto de me afogar. Isso implica uma falta de controle. Estar parado enquanto o mar te engole, ser levado pela correnteza sem conseguir escolher para onde.

Ontem, no segundo dia da medicação, eu notei: o barulho não me incomodava tanto, as luzes não me incomodavam tanto. Eu não sentia as pessoas me engolirem quando se aproximavam. Eu sentia meu corpo como algo contido, com limites próprios. O que eu sentia não era expansivo, maior do que eu, mas cabia dentro de mim.

Eu era eu, o mundo era o mundo. Eu conseguia ver a diferença.

Minha mente está mais lenta de alguns jeitos: o fluxo do meus pensamentos não me toma, e por isso meu raciocínio está mais linear. Tenho menos ruído na mente, mesmo que continue enevoada. Me canso mais rápido, mentalmente.

Eu ainda sinto dor. Sei, no fundo, que sempre vou sentir, em alguma intensidade. Mas no momento ela não é opressiva, não é algo que me desgasta.

É difícil me reconhecer, às vezes. Mas ainda me sinto eu.

Não sou engolido pelas ondas. Por hora, estou nadando, e não mais me afogando.